sexta-feira, 30 de novembro de 2007

a gaivota e o mar

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de manhã existia sempre um ar fresco e arejado. era também assim porque as limpezas eram feitas todos os dias àquela hora. e eu despojado já da ideia de que iria sair dali rápido, encostava-me a um canto enquanto o aspirador dançava no quarto de um lado para o outro. o velho que estava na cama ao lado ria-se e falava com as senhoras da limpeza, dizia sempre que se fosse mais novo elas iam jantar com ele de certeza. a maioria das vezes elas diziam que não adiantava eu estar naquele estado de espírito, porque nem ajudava a melhorar a minha saúde. e eu a maioria das vezes nem respondia. elas eram rápidas, e eu sabia que a minha antipatia era compreendida por elas. por isso elas diziam o mesmo todos os dias.
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debruçava-me no cadeirão a ver o rio a desaguar no mar. era um espectáculo luxuoso dadas as circunstâncias, e eu admirava aquilo como uma compensação pelo estado resguardado e enclausurado a que me remetiam. pensava que quando saísse dali iria ao pé do porto de mar e esperar o navio chegar, apreciar os homens a descerem e a carregarem o material, a rirem e a relaxarem dos dias de alto mar. eu imaginava-me lá naquele momento. também sabia que não iria lá nunca. quando saía não tinha essa vontade.
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quando ficava entediado de tamanha beleza na paisagem, esmiuçava nas mãos uma bolacha maria e atirava fora da janela. era um corropio de gaivotas a baterem asas em direcção ao parapeito da janela. e elas olhavam para mim como que a pedir mais. ficavam às voltas enquanto eu as admirava e voavam de novo quando sentiam que eu já não iria oferecer mais nada. um dia depois do outro eu fazia o mesmo gesto, aproximadamente à mesma hora. até que num dia em que estava pior e não podia sair da cama, elas voaram em direcção ao parapeito e ficaram a olhar para mim, admiradas e questionantes sobre a razão da minha prostração em estado resignado, sobre a cama a cheirar a lençóis lavados.
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aí percebi que os animais regressam sempre, e que o interesse que os move pode ser genuíno. pode ser sincero. porque como nós, querem sempre alguma coisa de alguém. mesmo que seja um aperto de mão. e nesses dias as minhas visitas eram mais que muitas. e o velho, da cama ao lado tagarelante, ria tantas vezes que eu às vezes suspeitava que ele não sabia que estava num hospital.
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sorri para ele no dia em que saí. apertei-lhe a mão e agradeci a companhia. enterneceu-me o facto de nos olhos dele eu ver que também queria ir.
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antes de sair virou-se para a janela e disse-me,
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vá descansado que eu dou-lhes umas bolachas amanhã.

2 comentários:

Onun Ras Al Gull disse...

Sempre que leio "bolacha Maria" sinto-me profundamente inspirado...

Susana Júlio disse...

A rotina atinge todos os que vivem como um murro da verdade: estonteante, seco e real.

Vim deixar os parabéns a um dos vencedores da Carta ao Coronel! Também bem merecida!
Agora que visitei este cantinho percebo porquê!

: )

Bom fim-de-semana.