quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

os 47 dias do desterro (XIV)

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uma noite de chuva assim só pode anunciar o fim do mundo. trovões, rajadas de luz a rasgar a escuridão do quarto, estrondos ensurdecedores e assustadores, chuva incessante, bátegas de águas a correrem pelas caleiras do meu telhado, e eu ali parado. como se todo o mundo estivesse nas tintas para o meu estado. como se o mundo estivesse noutra parte e se eu ali parado fosse só eu. o apêndice do mundo, o apêndice corta-se e pronto. com sorte evita-se males maiores. ninguém precisa dele para nada. corta-se e pronto. eu ali só, pensava nisso mesmo, disse em voz baixa ao mundo, corta-me de ti.
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durante a noite a chuva amainou e ele descansou o que precisava como sempre, até porque se não tivesse conseguido repousar até àquele momento, também não iria conseguir mais, porque o seu pai entrou mais uma vez no seu sonho. era recorrente, embora com o passar do tempo ele aparecesse com menos frequência. vinha de longe a longe e sentava-se aos pés dele, ajeitava a colcha, punha-se confortável, sentava-se e falava. com a sua voz normal, mais pausada, com um ritmo de respiração quase imperceptível, dizia o que lhe ia na alma. nunca falava da sua vida, que estranho, ele morto e eu a pensar que ele ainda tinha vida. e de certa forma tinha. à maneira dele falava da vida que teve connosco. com a minha mãe, quando eram novos, quando saia com os amigos, quando trabalhava para este ou para aquele. e eu ali parado. longe do mundo. nunca tive medo de o ver ali tão perto e tão real, ele morto eu vivo, e a falarmos como se estivéssemos ambos mortos, e na verdade a maioria das vezes mais parecia isso.
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antes de sair nessa noite, enquanto ajeitava a colcha, disse-me que era hora de não mais voltar aos meus sonhos. pediu-me que olhasse pela minha mãe o tempo que lhe restava e disse-me umas quantas palavras que já quase não percebi.
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nessa manhã cavei mais um buraco. o desterro ali ao pé de mim. as minhas mãos a enterrarem as roupas do meu pai. o desterro dele, e o meu também. o buraco tapado e eu a fumar e a pensar que ele ainda voltaria algum dia.
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tinha dito com a voz a desvanecer que o meu erro foi ter ficado naquela terra. e eu sabia que sim.

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