terça-feira, 18 de dezembro de 2007

os 47 dias do desterro (XX)

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o homem que vemos por estes dias deambulando na sua vida diária, normal, descomprometido perante o que se assume corriqueiro, vive os dias assim, incertos, maleáveis ao sabor das vontades do seu intimo, dos desejos mais banais, como o que ele agora faz. sentado em cima de uma monte de terra, fresco e fumegante do frio, ele fuma o seu cigarro, naquele que sabemos ser o 47º buraco e último da sua vida. neste seu quintal.
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os seus dias tem sido premonitórios, de sabores a batata cozida e um peixe, ora cozido ora grelhado no seu fogão de sala. vive assim só e em paz. vive de fugazes escapadelas à mulher da sua vida. a viúva cada vez mais saborosa, não tanto como o peixe, embora de sabor a pele com água de colónia feminina, tem sido o plano mais simples e conseguido de toda a sua existência.
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a espontânea conversa de café, fim de tarde arrefecendo ao ritmo dos minutos a passar, e ao por do sol do lado da torre da igreja, foi interrompida pela visita de uma assistente do lar onde a minha mãe estava a viver os seus dias. eu a sentir pulsar nos meus dedos as premonições que me invadiam nos últimos tempos, o dia a escurecer enquanto eu me aproximava do lar e a cor dos meus olhos a tornarem-se brilhantes. ao aproximar-me do quarto onde a minha mãe descansava, julguei ter tido a visão de uma sombra encostada no fundo do corredor, e a assistente disse para eu não fazer muitas perguntas. a minha mãe estava com o seu ar cansado, mas aparentava uma calma que não me impressionava, dada a sua apetência para gostar dos seus dias do fim. ele olhou para mim virou-se, e pela primeira vez falou desde o o dia em que quase se afogara. disse-me que deixasse tudo o que tinha e a partir de amanhã fugisse com tudo para junto dos meus irmãos emigrados. fiquei espantado por ter falado e por me ter aconselhado a partir. ela suspirou e não falou mais. quando saí a sombra estava ao pé dela e pareceria a silhueta do meu pai, que nunca mais me visitara em sonhos. a minha mãe morreu nessa noite.
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questiono-me se o meu erro ainda se manteria ao continuar naquela terra.

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