terça-feira, 2 de setembro de 2008

florentino ariza não morreu de amor [9]

[1199]

florentino ariza não morreu de amor. morreu a dormir num dia de calma subida do rio

não sobra nos olhos de quem passa a certeza de verem algo novo. a manifestação de rara beleza não espanta quem, ano após ano, se senta a deliciar o filme em movimento. as plantas abrem-se. mostram o peito e os filamentos coroados de pólen, devotando a sua vida aos que com sorte conseguem assistir a este espectáculo. no fim a flor morre. contudo, durante vinte e quatro horas é uma dança assinalável de cores vivas que renascem para uma curta vida. é assim no jardim funte del amor, um assinalável pulmão encastrado entre a cidade e inóspita planície de este, e com a floresta titânica como pano de fundo.
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esta cidade já cresceu muito para além dos muros mais antigos da cidade original. os muros foram o suporte de uma guerra duradoura, servindo para proteger quem sempre viveu deste ar. fermina ainda se lembra do dia em que chegou a esta cidade vinda no barco comercial. percorreu durante semanas as muralhas, procurou todos os caminhos sinalizados que a levassem aos recantos mais bucólicos do aglomerado. fermina já não é uma criança outrora irreverente e de instintos coligidos pela idade adolescente.
os seus olhos estão há dois dias fechados.
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(tudo se passa na réstia de memória que subsiste de uma vida coroada com uma verdade invisível, o seu coração pertenceu a dois homens. em sonhos, ou no pequeno espaço onde ela se escondeu do mundo, dentro do seu labiríntico cérebro, senta-se no jardim que tantas vezes aprendeu a sentir deste modo, de olhos cerrados ao mundo. vai sorrindo aos que por lá passeiam sentindo a estranha sensação de leveza desmaterializada, como se apenas o coração resistisse ao lento definhar do seu corpo. sorri aos rostos indizíveis, aos homens de olhar absorto, às mulheres de inquebrável cara abstracta. são seres perdidos deste mundo)
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no quarto do hospital, um dos filhos entra devagar procurando o silêncio no arrastar dos pés, para que nada incomode o resvalar de pétalas que transporta nas mãos. as brancas flores que arrancou do jardim, mesmo decepadas do seu alimento vivo, conseguem mutilar o ar triste, iluminando o corpo de fermina, que estendido se alvora em branco radiante.
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ao canto, em cima da mesa, está uma caixa de madeira que sabemos ser depositária fiel de cartas escritas em espaços esquecidos, nas mesas do café juanes, nos dias agoniantes de florentino, nas manhãs cinzentas e nos orvalhados bancos do jardim. ninguém se atreve a abrir a caixa. é uma tácita ordem nunca dita por fermina, mas que todos sabem ser necessário seguir. hoje ninguém poderá ler uma carta a fermina porque ela dorme.
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(sentada naquele jardim sonhado, que se parece demasiado com uma realidade distante, sente aproximar-se a cotovia que a observa atentamente com os patas enterradas no rio, sente um rouxinol pousar no banco em frente soletrando um canto estrídulo, sente o aproximar de duas mulheres serenas, e estranhamente não se atemoriza perante o papel que uma delas lhe entrega,
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amo-te para o meu sempre fermina,
amo-te pelo dia em que imiscuí no teu destino
amo-te porque sem palavras memorizei o teu ser-todo-perfeito.
morrerei no dia em que te tiver nos meus braços.
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florentino ariza
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nada à sua volta respira de tão estática é a imagem. nada se percebe de tão desfocado se vai tornando aquele sonho. ela recompõe o seu robe e abrindo os olhos)
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suspira dentro de um quarto de hospital.
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deixemo-la viver os últimos dias.

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