sábado, 13 de setembro de 2008

a insigne residência dos limas [4]

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IV

certos domingos são penosos para ele. o nosso ilustre residente desta terra, sabe que os sorrisos da mulher ao brincar com as crianças, são um pouco paliativos. hoje não podem ter filhos, e por isso a dor que ela foi amenizando com o tempo, não deixou de se transferir para ele. ele pressente que nos dias em que regressam da missa na capela da aldeia, o silêncio que se tomba sobre os lábios dela, nada é mais que um toque do passado, que ressoa no seu espírito como os sinos da torre anunciando as horas.
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os afazeres semanais são colmatados com algum trabalho comunitário. lúcia e antónio lima, nasceram com a vontade de mudar o mundo de fora para dentro, tantas vezes tentando cortar com as mentalidades ultrapassadas. a educação das crianças era muitas vezes esquecida e este casal preferia dedicar-se a refinar o gosto das crianças pela natureza, pela arte, pela música e pela literatura. era para os limas a única e admitida forma de curar a maleita dos corpos, que secos, jamais conseguiriam dar ao mundo um rebento com o apelido lima.
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(tantas vezes a tristeza se apodera de lúcia de tal maneira, que o seu olhar se perde do mundo em todas as pequenas estrelas da noite)
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é nesses dias que se dedica com mais afinco a procurar a novidade, mesmo que ao fim de tantos anos lhe pareça mais difícil surpreender a esposa. corre lugares em busca de livros fabulosos e raros. calcorreia ruas e lojas soturnas, escondidas em becos, procurando saber dos objectos que possam fazer saltar o coração ou de novo cintilar os olhos da mulher que ama. hoje decidiu-se por um girassol, tal como os que tem no jardim, um girassol de cor silvestre e aguerrida, algo tão sul americano que talvez a possa alegrar pelo lado carnavalesco. acompanhou-o por uma passagem de eça de queirós, transcrita à mão num papel perfumado e delicado, uma fraqueza que sabia à partida tornar lúcia lima num adocicado principio de noite de primavera.
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não era surpresa. ela sabia que quando chegava e os vitrais do lado nascente irradiavam uma luz tremeluzente, era sinal de que a mesa estaria composta de todos os apetrechos romanescos, e as velas ardendo no castiçal do centro seriam o desfazer da dúvida. era mulher de amor controlado, profundo é certo, mas quase sempre calmo e profundamente tranquilo. mas o esforço de quem amava incondicionalmente, deixava-a perdida num lago emocional, numa estreita confluência de prazer e estímulo, que desaguava desmedidamente no seu peito sem poder controlar. e assim, disfarçando o espanto, descerrava o pano do palco, e emocionadamente entregava toda a sua alma naquele cristal polido.
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o sonho acordava na manhã seguinte entre os ponteiros dos relógios e os sorrisos carregados de indisfarçável satisfação de ver crescer o rebento do amor, como um filho legítimo.
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(a insigne residência dos limas [1], [2], [3])
(a insigne poesia dos limas [1], [2], [3])

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