quinta-feira, 11 de setembro de 2008

a insigne residência dos limas [3]

[1207]



episódios da vida rural

III


(…)
a vida de uma casa, mesmo que perdida entre uma imensa paisagem, tem sempre escrita uma página a negro no seu livro de registo. na história desta insigne residência que temos vindo a relatar com o suposto rigor realista de observador, há um episódio que relutantemente vamos revelar. não há nada que possa alterar o passado, seja de uma pessoa, de uma vida, de uma casa, ou mesmo de um santo. contar o que se passou nesta casa há quase sessenta anos atrás, não é senão uma inconfidência que desonra a confiança de que se apoderou o narrador do texto. não há no entanto certeza de que não possa fazer falta ao enredo.
(…)


nos pequenos caminhos que aqui desaguavam nas portadas desta casa, havia sempre um empecilho que impedia o seu dono de transportar a carroça sem ser necessário parar para o resolver. uns dias, pedras de um muro que caíam, noutros uma cobra que atiçava o jumento, e nalguns casos era o padre que se enamorava a uma raza de milho ou feijão. isto é um país de maltrapilhos do alheio, comer e beber sem trabalhar corria no sangue de muita gente.
(o nome do nosso agricultor, de nada importa, nem que sirva para o deixar a salvo de críticas. o seu trabalho de uma vida merece que a tragédia seja revelada pelas palavras mortiças de quem não esteve lá, e, na verdade, pouco mais sabe que a lenda.)


a vida deste desgraçado sacrificado termina num dia de sol arrasador. era um dos dias em que a mulher necessitava recolher água num poço perto de casa. empenhado noutras tarefas, o nosso obstinado trabalhador, nem teve tempo de respirar para tentar salvar o seu filho que caíra, sem salvação possível, das mãos da sua mulher. do fundo do poço saiu um cadáver. ou nem isso. um corpo de uma criança é um pedaço de céu azul, uma lágrima arrancada a um duro homem da terra.


não que esta casa esteja talhada ao azar. mas passados dias - podemos ver ainda baloiçando na oliveira – o corpo do enforcado. o corpo de quem dizima a alma ao mundo estratega e ceifeiro. a mulher enlouqueceu e foi internada numa casa de saúde o resto dos dias. a igreja seria a proprietária durante vários anos, até ser vendida umas quantas vezes até chegar aos ilustres limas.

(…)
o casal está à sombra daquela oliveira neste dia estival. saboreiam a sobremesa de frutos colhidos nos campos. saboreiam a vida. saboreiam tudo o que têm e que um dia faltou nesta terra, nesta casa, debaixo desta mesma oliveira. sabem que para viver em harmonia com a vida, precisam apreciar o silêncio dos dias mesmo que os espaços nos guardem segredos. e os limas sabem fazer isto como ninguém.
(…)

(a insigne residência dos limas [1], [2])

(a insigne poesia dos limas [1], [2])

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