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III
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a vida de uma casa, mesmo que perdida entre uma imensa paisagem, tem sempre escrita uma página a negro no seu livro de registo. na história desta insigne residência que temos vindo a relatar com o suposto rigor realista de observador, há um episódio que relutantemente vamos revelar. não há nada que possa alterar o passado, seja de uma pessoa, de uma vida, de uma casa, ou mesmo de um santo. contar o que se passou nesta casa há quase sessenta anos atrás, não é senão uma inconfidência que desonra a confiança de que se apoderou o narrador do texto. não há no entanto certeza de que não possa fazer falta ao enredo.
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nos pequenos caminhos que aqui desaguavam nas portadas desta casa, havia sempre um empecilho que impedia o seu dono de transportar a carroça sem ser necessário parar para o resolver. uns dias, pedras de um muro que caíam, noutros uma cobra que atiçava o jumento, e nalguns casos era o padre que se enamorava a uma raza de milho ou feijão. isto é um país de maltrapilhos do alheio, comer e beber sem trabalhar corria no sangue de muita gente.
(o nome do nosso agricultor, de nada importa, nem que sirva para o deixar a salvo de críticas. o seu trabalho de uma vida merece que a tragédia seja revelada pelas palavras mortiças de quem não esteve lá, e, na verdade, pouco mais sabe que a lenda.)
a vida deste desgraçado sacrificado termina num dia de sol arrasador. era um dos dias em que a mulher necessitava recolher água num poço perto de casa. empenhado noutras tarefas, o nosso obstinado trabalhador, nem teve tempo de respirar para tentar salvar o seu filho que caíra, sem salvação possível, das mãos da sua mulher. do fundo do poço saiu um cadáver. ou nem isso. um corpo de uma criança é um pedaço de céu azul, uma lágrima arrancada a um duro homem da terra.
não que esta casa esteja talhada ao azar. mas passados dias - podemos ver ainda baloiçando na oliveira – o corpo do enforcado. o corpo de quem dizima a alma ao mundo estratega e ceifeiro. a mulher enlouqueceu e foi internada numa casa de saúde o resto dos dias. a igreja seria a proprietária durante vários anos, até ser vendida umas quantas vezes até chegar aos ilustres limas.
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o casal está à sombra daquela oliveira neste dia estival. saboreiam a sobremesa de frutos colhidos nos campos. saboreiam a vida. saboreiam tudo o que têm e que um dia faltou nesta terra, nesta casa, debaixo desta mesma oliveira. sabem que para viver em harmonia com a vida, precisam apreciar o silêncio dos dias mesmo que os espaços nos guardem segredos. e os limas sabem fazer isto como ninguém.
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