sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

os 47 dias do desterro (VI)

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às 5 da tarde o sinal sonoro da empresa toca bem alto e todos começam a dispersar. antónio pega no seu cartão de identificação, passa-o no sensor e sai para o balneário onde se sacode o melhor que pode. sai todos os dias à hora deste crepúsculo invernoso, à hora da descrença da luz, à hora que todos pensam em regressar a casa. mas ele não. sai para visitar a sua mãe e pelo caminho pensa no que aconteceu.
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quando o meu pai morreu, a sua mãe ficou muito ausente. ausente dele, do mundo e por vezes tinha a certeza de a ver ausente dela própria. fazia ainda as lidas da casa como sempre, com afinco e dedicação, mas deixara de cantar nessas tarefas, tantas vezes acompanhadas por melodias dos saudosos tempos de criança. ele via nela o estado puro de tristeza. quando acabava algum dos trabalhos, parava durante uns bons minutos a olhar em direcção a nada. dizia às vezes palavras sem nexo, que a faziam regressar ao estado normal, e seguia como se nada tivesse acontecido, nunca esperando por um comentário ou resposta minha.
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num dos dias de lida das vacas, em que deixava aberta a porta do curral, arejando o espaço dos animais e deixando entrar a pureza do ar rarefeito e pestilento, a minha mãe tinha-se sentado no nosso tanque num dos seus momentos de abstracção com o mundo. sei que no momento em que a vaca espirrou um jacto de leite enorme, com uma vontade a que eu nunca assistira, e em que os segundos se sustiveram no meu salto irreflectido, os animais entraram todos em uníssono numa gritaria ensurdecedora, e eu corri a acudir a minha mãe. ela estava com as pernas de fora, deitada de costas dentro do oceano que tinha tornado o tanque. só me lembro que ela não se debatia com aquela forma estranha de se deixar partir. não sofria ao ver que se aproximava o tempo da sua libertação. eu, com um braço só, agarrei em todo o seu corpo e tirei-a para fora da água. ela ficou inconsciente durante muito tempo. nem sei quanto tempo. o suficiente para ter ficado naquele estado permanente de desorientação e contemplação do infinito.
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visito-a todos os dias desde que ela foi para o lar, onde é tratada com todas as condições. vive numa cadeira de rodas e de olhar melancólico. vive em estado catatónico permanente. e eu, quando a visito sei que lhe levo mais tristeza ainda. eu sou para ela o que resta do meu pai. e eu sou para mim o que resta da minha mãe.
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nesses dias sei que o meu erro foi ter ficado nesta terra.

2 comentários:

Teté disse...

De quatro em quatro parágrafos ele lamenta ter ficado naquela terra? Hummm...

Susana Júlio disse...

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