quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

os 47 dias do desterro (XII)

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amigos destes eu sabia que não havia. eles eram meus amigos. até já percebia que aqueles momentos da vida de criança nunca voltariam. e eu aproveitava e de que maneira. quem me olhava de canto era o meu pai. ele via a minha mãe a remendar a roupa, ora eram as calças remendadas nos joelhos, ora eram as camisolas cozidas nos cotovelos, tudo em mestria suprema das fadadas mãos da minha santa.
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quando chegava a casa, e a minha mãe dizia-me para ir ajudar a dar os restos de comida aos porcos e eu desaparecia, como quem esquece a tarefa e o dever, e depois paga pelos erros. o meu irmão batia-me com uma ripa em madeira que tinha perto da porta. o meu pai já não dizia nada. delegou nos meus irmãos a responsabilidade de me educarem. até ao dia em que descobri que eles andavam a fumar às escondidas. desde esse dia que não mais me bateram. e o meu pai pensou que eu endireitei de vez.
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nos dias em que não íamos à escola, ficávamos a brincar ao pião. eu tinha um monstro, que o meu irmão gervásio me ajudou a fazer, que metia respeito. era um dos campeões. e eu, em sendo o rei dos piões, comecei a fazer sobressair o meu ego. andei com os meus dois compinchas lado a lado, a mostrar que éramos imbatíveis. e éramos. embora neste tempo as coisas fossem mais triviais, as lutas eram teóricas e simplórias, nunca a vingança pairava nos olhos de quem perdia, e nós éramos o que nunca mais seríamos.
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a rita foi a loira mais inocente que eu conheci. era a boneca feita de pele branca e rosada nas bochechas, de olhos pequenos e brilhantes, que escondia quando alguém olhava no fundo. a rita gostava do zé. e o zé nunca ganhava ao pião. ela andava com a joana nos dias em que jogávamos no campo junto à escola. o zé nunca ganhava ao pião. mas ficou com a rita. e eu até gostava da rita, mas nos meus olhos não havia rancor nem vontade de revanche. cada um era bom naquilo para que tinha nascido. e eu, que tinha rasgado a camisola mais uma vez, sentia-me aliviado porque o meu irmão não me ia bater quando chegasse a casa, porque tínhamos um segredo.
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eram os dias em que errar ao pião não interessava. mas ainda não sabia que errar, era ficar naquele lugar.

2 comentários:

Susana Júlio disse...

Analepse...agora a infância. Estou a "continuar de gostar"!

:))

Teté disse...

Embora tardiamente, continuo lendo...