quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

os 47 dias do desterro (XIII)

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era uma manhã como tantas outras. uma manhã com a luz das manhãs. escuro só eu que tinha de entregar o dinheiro ao doutor para os remédios do meu pai. pelo menos tinha o dinheiro. saí para a luz da manhã igual às manhãs de sempre, a gente na rua igual ao de sempre, os mesmo nas esquinas, os mesmo olhares de desdém iguais ao desdém de sempre. eu saí pelo caminho atrás da casa do doutor.
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eu sei que na porta da entrada havia gravado uma frase em latim. dizia sol lucet omnibus. mais tarde soube que significava, o sol quando nasce, nasce para todos. pelo menos para os daquela casa. era uma casa senhorial, comprada pelo doutor antunes depois de se instalar na nossa cidade. tinha umas portadas altíssimas em ferro pintadas em verde, com desenhos e trabalhos rebuscados com pessoas e animais na lida do campo. era a quinta do passal. vivam lá três caseiros. era uma enormidade em terreno, uma riqueza de videiras, árvores de fruto, água, minas, uma riqueza inesgotável. tinha pertencido ao conde da pulé. o conde falira às mãos das suas sete mulheres. e teve de a vender. em frente do desespero do conde em fazer dinheiro, o doutor antunes comprou-a sem pestanejar, sabendo que fazia um grande negócio.
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quem atendeu ao portão foi a micas. a miquinhas era a caseira serviçal e solteira que vivia na mesma casa, embora dormisse no quarto dos fundos. sorridente, deu-me bom dia e disse-me para esperar porque o doutor ainda estava no seu pequeno-almoço. eu sentei-me a ver os cães a correr pela quinta. eram pelo menos sete. dois deles tinham ar de poucos amigos e foi com um deles que eu corri à frente a fugir e a temer pela vida, um dia que regressava da missa.
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quando o doutor deu ordem para eu entrar já o sol ia alto. eu olhei e pensei que era quente, ameno, gostoso o afogo da sua mão na minha cara, e de repente, ainda aturdido pela luminosidade do astro a ver ondas calor entre as minhas pálpebras, senti o cheiro a perfume, e a água de colónia feminina. era a filha do doutor. estarreci ali a olhar para ela, meio enublada a minha visão, a miquinhas a chamar por mim, venha rapaz, agora que o doutor chamou, e eu ali especado a olhar para a filha do doutor, uma visão tão periférica que desejava poder estar ali ao seu lado como um homem desejado pelas mãos dela.
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entrei, paguei e trouxe os remédios. sabia que não podia olhar para ela. pelo menos não daquela forma. foi a miquinhas que me avisara disso.
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eu sei que a alegria daquele dia não esmorece o meu erro de ter ficado nesta terra.

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