quarta-feira, 16 de julho de 2008

e(u)clipse

[1123]

demorei a ouvir o meu pai naquele dia
em que a sua mão ardia na minha cara
e os dedos ressaltavam em vermelho vivo.

(há um par de anos atrás decidi correr o mundo,
ser um saltimbanco de memórias, escrever os rios
e as terras nos pedaços de flores e folhas que colhesse.

mas a sensação de ansiedade mantinha-se inerte
nos meus ossos, de tal forma ardendo que nem
ao dormir eu conseguia esquecer a mão do meu pai.)

regressei à minha terra em busca de um emprego
decente, coerente, cabal, enriquecedor, honesto,
tão verdadeiro quanto impossível ao meu espírito.

poeta, gritava-me a voz do fundo do vale, poeta.
poeta errante, criador de sonhos, vendedor de epopeias
orador de palavras desenhadas, usurpador de corações.


então de joelhos pedi a deus,

deixa-me ser doutor de leis, criador de gado, padre
ou entalhador, cortador de carnes, rico ou pobre
pintor ou cantor, mas não poeta enganador.

deixa-me ver o mundo de cima do monte, vigiar
a costa ou andar de barco, pescador de homens, até
circuncisador, mas não poeta insidioso.

pago em promessa os meus pecados, indo a
meca ou a jerusalém, percorro até aos mosteiros tibetanos
os caminhos tortuosos, mas não poeta.

deixa-me ser homem e pai, cobrador de impostos
cesteiro de vime, oleiro, juiz ou desembargador
mas não este tormento de esperar palavras.

deixa-me ver o teu poder nas escrituras, pedir
nas ruas, assaltar bancos, inventar uma bomba
ou uma arma, mas não trovador sem arte.

não poeta. não poeta-preguiçoso.

deus ergueu sua voz e ordenando que me levantasse,

assentou a sua mão pesada na outra face.

tu não tens jeito para poeta
e a profissão não é deus que a faz.

5 comentários:

susemad disse...

Está espectacular!
Gostei do princípio, do meio e do fim! Muito bom mesmo!
Lê-se fluidamente e transmite muito bem o enorme desejo do poeta em não ser poeta!

Unknown disse...

muito bom! nem eu vivo fazia melhor

PontoGi disse...

Muito bom!

S. G. disse...

obrigado a todos.

mas não exagerem, por favor.

beijos e abraços ;P

S. disse...

Não me parece que consigas ignorar a voz do fundo do vale...não, manifestamente, não consegues!! Nem tentes, por favor!!

PS: a tal "calma"...é uma questão de tempo até encontrares essa morada...