terça-feira, 1 de julho de 2008

florentino ariza não morreu de amor [5]

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florentino ariza não morreu de amor. morreu a dormir num dia de calma subida do rio
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frei justino, de sandálias de couro, tecidas à mão - pela sua própria mão - foi a correr ver o que se passsava no quintal do convento franciscano de macondo. nesta terra perdida no fundo do rio, nada se passa de anormal até que o destino se intrometa e faça remover o pó que se vai acumulando.
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(eram ladrões de galinhas. levaram duas ou três, e a partir daí seguiram-se meses de episódios estranhos e macabros até)
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(fermina era a cândida rapariga, filha do emigrante e negociador chegado a macondo em tempos de prosperidade. assentaram o negócio e mesmo sem a presença de sua mãe, fermina foi sempre obediente e temente aos mandamentos de seu pai)
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recorda a sua vida como um filme que passa na núvem, a tela é o azul do céu, e o sol é o projector da película, onde até as ondas de calor realçam a nebulosidade do seu passado, como se estranhamente a verdade se escondesse entre a mentira, e os factos se enrolassem em promiscuidade com os argumentos.
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(há ali na mesa de cabeceira mais uma carta que ela resiste a abrir. a caixa de pandora que transformou a sua vida, abrir aquele cofre sem saber que os fantasmas regressariam de mansinho, como o fumo da lareira nos dias de inverno, foi um erro tremendo que arruína o seu desgastado coração envelhecido,
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meu cravo amarelo,
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seduz-me ver-te escondida atrás dessas janelas, adivinhando o teu corpo despido do linho. a tua pele a cheirar a água de colónia e os sinos da igreja a tocar a rebate pela tua pureza. alma destruída carrego pelo peso do dia em que o teu pai nos separou. juro que me suicído, se arranjar arma mais forte que o meu amor. um dia verás, tão bem como eu no céu, o sinal enviado a testar o sal das tuas lágrimas.
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verás que fui eu o teu grande amor, desde o dia em que te escrevo.
dá o teu corpo. não dês o teu coração
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aguardo-te
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florentino ariza.)
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o frei corre na rua atrás de dois malandros, jovens com espírito brincalhão, carregando num saco às costas duas galinhas roubadas no sagrado espaço de deus.
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a fermina vislumbra-se entre as ondas de calor uma libelinha que desce do céu e se vem encostar à sua janela. as lágrimas que dela deslizam, não são passíveis de serem medidas pelo desgosto. mas pela alegria de se ter entregue a florentino.
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deixemo-la descansar

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