quinta-feira, 17 de julho de 2008

florentino ariza não morreu de amor [6]

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florentino ariza não morreu de amor. morreu a dormir num dia de calma subida do rio.
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segunda é dia de feira. terça é dia de descanso e visita ao mosteiro das beneditinas. quarta é dia de matar um animal e de jantar com os convidados ilustres da terra. quinta é dia de cemitério e flores nas sepulturas dos seus dois maridos. sexta é dia de visitar as plantações.

sábado,
decorre na praça uma tourada anual, com uma amostra de animais robustos, há chegas de bois, vendem-se a bons preços os melhores vinhos e as incontestáveis maravilhas da cozinha sul americana.

(fermina está em casa em descanso. o dia de sábado, tal como o de domingo, é dia de repouso e sombra. recolhe-se em casa, nas suas rendas, nos seus animais de estimação, ou simplesmente sem fazer nada. é um dia desenhado a preto e branco, mesmo que não saibamos se o artista o pinta a lápis ou a carvão, o dia é assim sem cor embora com muita luz.)
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bebe café ao fim do almoço, sempre sozinha, na mesa de 20 convidados, onde repousam os pratos e os talheres de serviço diário. hoje no centro só está uma flor, colhida com os cuidados exigentes de fermina. abre a carta, cerra os olhos, respira fundo, uma e duas vezes, e os olhos finalmente acertam nas palavras,

“meu girasol,
hoje estou sozinho no meu quarto. vi-te passar lado a lado com o teu marido. saberás que me assaltas o estômago por uma semana inteira, roubando-me a vida, e eu sem força, fome ou vontade de sair, estarei aqui a engendrar o plano perfeito. o plano que espero há anos poder concretizar. contudo, minha flor amarelo-radiante, o sol que te faz circular ainda não sou eu. mas serei um dia. e na paz do dia em que o meu peito respirar os teus negros caracóis, eu serei um audaz mendigo a quem calhou em sorte a lotaria.

não te esqueças de mim, nos dias frios.

dá o teu corpo. não dês o teu coração.

aguardo-te

florentino ariza”

na tolha de linho que cobre a mesa, adensam-se uns pingos de água e sal. nada se mexe neste cenário preto e branco. mas com os olhos molhados, ela nem reparou que o girassol se voltou para ela em comiseração.

deixemo-la chorar.

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