sexta-feira, 25 de julho de 2008

florentino ariza não morreu de amor [7]

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florentino ariza não morreu de amor. morreu a dormir num dia de calma subida do rio

(os armários alinhados do lado direito da sala, com os jarros de porcelana francesa intactos - trazidos de terras gaulesas há mais de 50 anos - escurecem e esbatem a força da luz que entra nas janelas. abertas sempre pela manhã, é a esta hora que são cerradas para que fermina urbino [ou daza, ou ariza - conforme o tempo e o espaço do nome na sua vida], entre a sentar-se na cadeira de baloiço. durante meia-hora fecha os olhos, e não raras vezes adormece entrando em sonhos de recorrente frescura juvenil.)
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na rua, em frente à casa municipal, decorre um concerto de música clássica. o som vai-se imiscuindo em cada casa da vila, entrando ao ritmo do violino pelas portadas e ressoando nos sub-conscientes a cada rasgo do violoncelo. é a 5ª sinfonia de beethoven.
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(no armário estão alinhados os livros de uma colecção de comprada pelo pai de fermina, e que foi crescendo com os gostos do seu primeiro marido, incluindo um sem número de entradas bibliográficas sobre medicina. ao lado direito alinham-se romances, poesia e alguns (poucos) ensaios. o mercador de veneza de shakespeare, é uma da obras a que fermina gosta de regressar, mas o livro pousado em cima da mesa tem uma passagem de romeu e julieta sublinhada,
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"só ri das cicatrizes quem ferida nunca sofreu no corpo."
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o silêncio de fim de tarde nas ruas é característica solene e imperial desta gente. o respeito pela arte, nas suas mais variadas formas, parece querer tornar este povo num estado de superioridade intelectual que o há-de distinguir dos demais vizinhos. ninguém entende estas raízes genéticas, dado que a guerra foi sempre a única forma de se resolverem os conflitos gerados no seu seio. uns jovens estão deitados à sombra das acácias e vão brincando em silêncio, jogando ao de leve com a líbido no tabuleiro do xadrez do amor.
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" minha doce e amada tulipa holandesa,
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que estranho chamar o teu nome a meio da noite, sonhar entusiasmado com o desfecho esperado, e no entanto ao raiar o sol apenas a minha sede e o meu intento do coração permanecem lúcidos. todo eu entro no escuro do dia. visto o meu fato mais estranho e não me importo que me apontem o dedo e me chamem louco. os nomes que temos não nos entendem. já dizia romeu "que há num simples nome? o que chamamos rosa, com outro nome não teria igual perfume?".
por isso os desdenhosos dedos em riste desta gente não podem ser julgados. eles não sabem que nem os nomes nos definem. e por isso eu escrevo em loucos delírios para que não leias. porque o teu nome, nem as palavras podem definir. o teu nome só o meu coração o pode repetir.
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as sereias chamam por mim. vou morrer ali. um dia morrerei ali.
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não me morras antes do meu morrer.

dá o teu corpo. não dês o teu coração.

aguardo-te

florentino ariza”

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acena a um vizinho e fecha a cortina da janela. guarda mais uma carta escrita num tempo longínquo. parecem fantasmas soltos de um cofre a falarem cada um para o seu lado, tantas são as vozes que ecoam na sua cabeça. por vezes desconfia da sua sanidade mental.
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deixemo-la recompor os seus sentidos.

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