quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

os 47 dias do desterro (V)

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tocava o sino da igreja às horas certas, e também às meias e também aos quartos. não sabemos é que horas são na realidade. antónio dornas está sentado no seu último monte de terra, o mais fresco, o que lhe suja as calças já delas sujas, o que deixa respirar as minhocas que saíram do fundo da terra. antónio respira fundo e levanta-se. foi passar as mãos pela levada de água que percorre o terreno do lado nascente que o pai lhe deixou. sacudiu-as ao vento. e respirou fundo com o ar de dever cumprido.
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antónio vive há três anos sozinho, e vive tentando. tentando viver. a solidão que sente, nem sempre o incomoda, nem sempre o oprime, nem sempre o afasta do real. e vai lendo os livros que tem. o vício começou à seis anos quando leu o primeiro e nesse romance alguém elogiava e exaltava o gosto por ser pai. não parece verosímil que um agricultor leia romances, mas antónio que sempre foi à escola, gostou tanto da tarefa, que a cumpre regularmente como que tapando os ricos de luz da candeia, apagando as sombras dos objectos da sala, apagando o arrastar dos dias.
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de manhã levanta-se reconfortado por palavras, e de manhã cumpre os seus dias desde o minuto inicial. vai para o seu emprego fixo há 4 anos. nunca gostou dessa rigidez e nunca gostou da sobranceria e falta de humanidade dos patrões. mas era o seu destino e precisava do dinheiro para ajudar às despesas que a sua mãe ainda lhe dá. e por ela luta nestas horas de desespero quando a raiva o assola. quando pisa o mesmo chão que a outros parece menos digno. e não reconhece isto como sendo um mundo seu.
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e nestas alturas tem a certeza que o seu erro foi ter ficado com este trabalho. e sabe que o seu erro foi ter ficado nesta terra.

5 comentários:

Susana Júlio disse...

As palavras nascem com a pontaria certeira do granito, das expressões naturais daqueles que vivem na/ e da terra, cujos corações parecem nascer directamente da pedra e a quem a vida lhes foi atirada, também, como se fosse ela mesmo uma pedra.
E esta sendo a prova que se paga, não a recompensa por se estar vivendo.
Experiência pessoal ou de escritor...seja o que for, as palavras fazem deste texto um momento extremamente agradável ao se ler. Principalmente, vindo do seguimento dos outros trechos...vêm mais?! Espero.

S. G. disse...

Experiências de vivências e não de vida...

Segue em próximos capítulos, até porque a história se faz a ela própria e quanto ao terminar, será ela própria a decidir o seu fim.

Pedro Indy disse...

Tou a gostar, manda lá mais uns episódios. Se um dia houver uma adaptação disso para cinema ou televisão posso já dar uma ideia para a banda sonora:

É o coveiro
Da minha terra,
É o coveiro
Quem mais enterra.

Música (acho que) do Quim Gouveia.

Tou na tanga mas olha que esta música também faz parte da vivência pessoal de muita gente. Principalmente de quem cresceu junto a um campo de futebol e tinha de gramar estas músicas ao Sábado e ao Domingo de manhã nos jogos dos juniores, ou quando andavam a marcar o campo.

Companhia das Camurcinas disse...

Uma vez mais, os parabéns pelos belos textos que tens partilhado connosco!

:)

acho melhor que salvaguardes os direitos de autor... não vá Hollywood achar interessante e querer comprar as tuas magnificas obras, como fez com a obra de José Rodrigues dos santos "O Codex 632".

S. G. disse...

Zé Baptista,

As tuas palavras deveriam ter sido lidas pelo nuno markl (que passou pelo nosso blo) ou pelo pedro ribeiro. Eles perceberiam os talentoas desperdiçados pelas áfricas.

Companhia das camurcinas,

Estás atento. Eu só hoje soube que o filme vai ser adaptado.

Um Abraço